quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Presto a minha homenagem



Num entardecer de Agosto, com a lua cheia nascida e destacada no azul do céu, encontrámo-nos no areal da praia de Faro.

Éramos cinco mulheres reformadas da mesma profissão – o ensino.

As conversas de praia são agradáveis quando nos achamos entre amigos de longa data e o tempo ameno nos convida à nostalgia, levando-nos a vasculhar recordações e a acariciar os momentos que se foram…

O sol punha-se no horizonte!

Hoje, bem diferente de ontem, mas sempre com a sua singularidade…Amanhã não será como hoje e nem será como foi ontem!

Assim decorre a vida humana. O presente diferente do passado, com o tempo a desfilar, correndo numa “passerelle”.

Recuamos a 1956 com as recordações da Ofélia que saiu do Magistério Primário de Faro para a escola de Corte Pequena, Odeleite, Castro Marim.

Levava a cabeça cheia de sonhos, o coração cheio de juventude…mas esbarrou com inesperadas dificuldades.

Para chegar à escola apanhava o comboio até Vila Real de Santo António, tomava a camioneta (um machibombo) até ao Azinhal, onde esperava por um camionista que, a troco de umas moedas, a transportava na cabine, ao lado dele, até Corte Pequena. Quando ele não aparecia procurava o rapaz que fazia a distribuição do correio pelos lugarejos, montado num burro. Nesse dia ele ia a pé.

Na escola de Alta Mora, Odeleite, relativamente perto de Corte Pequena exercia uma colega a quem tinham emprestado uma bicicleta. O caminho era longo, passavam um ribeiro e levavam muita carga. Uma montava na bicicleta, parava ao fim de 3 ou 4 quilómetros, deixava o transporte e seguia a pé com a bagagem. Iam-se substituindo para facilitar a longa caminhada.

A escola da Ofélia havia sido construída pela população e tinha casa para a professora – duas divisões e uma cozinha com local para utilizar lenha.

Emprestaram-lhe uma cama de ferro com colchão de carepa, já muito moída, e um candeeiro a petróleo. Com caixotes de sabão, que eram de madeira, improvisou o mobiliário mais necessário. Dois caixotes, um por cima do outro, faziam de mesa de refeições, um outro perto da cama, servia para colocar uma vela.

A roupa era pendurada numa corda presa em dois pregos.

Numa venda que vendia de tudo foi completando as suas necessidades – um cântaro para ir buscar água, panelas, louças, copos…e um balde para as necessidades fisiológicas.

Não existiam infra-estruturas.

A habitação não tinha casa de banho. Tudo era despejado numa estrumeira ao ar livre. O banho era dado na cozinha, lavando o corpo a prestações, com água fria.

Aprendeu a acender lenha, que lhe ofereciam, para cozer os ingredientes para a sopa esmagando-os depois com o garfo, fritava uns ovinhos, umas batatas, rodelas de chouriço e pouco mais.

Uma vez por outra, mães de alunos ofereciam um coelho ou um frango já depenado. Perto do Natal aparecia carne de porco, banha, chouriços, toucinho…

Numa ribeira que transbordava no Inverno, impedindo o acesso à escola, uma mulher lavava-lhe a roupa.

As crianças andavam quilómetros para chegar à escola e muitas vinham descalças. Traziam a saca de serapilheira com a pedra e o almoço – um naco de pão, azeitonas, uma fatia de toucinho…

Leccionava as chamadas 4 classes a 40 crianças. Como as carteiras não chegavam, pedras trazidas da rua serviam de bancos.

Durante dois anos trabalhou nessa escola.

Casou no 1º ano e nasceu-lhe uma filha no 2º, beneficiando de 15 dias de licença de parto. A mãe foi viver com ela deixando o marido sozinho.

Só ia a casa pelo Natal e Páscoa.

Os habitantes cedo se habituaram a recorrer à professora para esta lhes ler ou escrever uma carta, para um conselho sobre uma dor de cabeça ou de barriga e até para ajudar no tratamento de feridas. Os noticiários da Emissora Nacional passaram a ser ouvidos em grupo, através do rádio da mestra. Era socorrista, escriturária e conselheira.

A colega de Alta Mora ia passar o fim-de-semana com a Ofélia e a mãe.

A região era fria e a casa não as protegia. Numa noite gelada um vizinho levou-lhes um fogareiro com brasas e passou o serão com elas.

A colega Ofélia ainda contou que em 1958, colocada na escola de Pechão/ Olhão, teve de alugar um quarto interior numa casa que era armazém de caixões. Não havia mais nada, era velha tendo a porta e as janelas desengonçadas. A filha, com 2 anos, dormia na gaveta do guarda fato e à noite os ratos passeavam pela casa.

A Maria do Céu relembrou a sua estadia na escola da Patã/ Albufeira, a partir de 1960.

Ia de automotora Faro/Patã e o resto do percurso era a pé, atravessando hortas. Numa delas era atacada por gansos bravos. Andava sempre munida com uma enorme sombrinha que lhe servia de protecção para o sol, para a chuva e para os gansos.

Levava almoço de casa, aquecia a sopa numa lamparina de álcool, comia fruta.

A escola era velha com pouco material para o ensino. O quadro era de madeira pintada com tinta preta baça, gasta com o uso.

A Joana recordou que a automotora que partia de Faro, vinda de Lagos, ia enchendo de professoras nos apeadeiros Portas do Mar, S. Francisco, Bom João e despejava-as a partir de Olhão até à Conceição de Tavira.

Eram viagens/convívio de ida e volta com diferentes percursos após a saída das estações. Umas iam a pé longos quilómetros, outras de bicicleta a pedal ou a motor e outras tinham a sorte de ter a escola muito perto.

O horário de sábado era aproveitado para a limpeza da escola. Saíam mais cedo dos locais de trabalho, apanhavam uma camioneta, desciam em Alfandanga e dirigiam-

-se pela estrada até à estação da Fuzeta.

Em 1973 a Fátima recebe alvará para trabalhar no Areal Gordo/Faro. A casa/escola tinha uma sala de aula com boas janelas e um cubículo que dava para uma horta. Nesse espaço cabiam meia dúzia de carteiras para 18 alunos. O chão era de terra batida, sem janela, sem poder fechar a porta, sem ardósia, sem água nem luz, sem casa de banho, sem espaço de recreio…e sem contínua.

Num alpendre anexo, a C.M.F. teve a gentileza de mandar fazer um resguardo privado para as três professoras se aliviarem…Dentro do alpendre construíram um poial e num dos cantos, mesmo ao canto, fixaram um “penico” sem fundo. Como a posição possível era de cócoras, não havia rabo que, ali colocado, conseguisse acertar no buraco!

Já escurecia!

Levantámo-nos. Havíamos partilhado dissabores do passado com alegria…

Relatar mais para quê?

Julgo que a missão de todos é prestar homenagem às professoras do ensino primário sofredoras, no anonimato, que iniciaram as suas funções de coração aberto e sentiram na pele o abandono, maltratadas pelo destino, magoadas, desapontadas…

Nestas MULHERES/PROFESSORAS o bom senso resistiu ao delírio de uma vida de sofrimento.

A reflexão dominou a paixão de serem educadoras a tempo inteiro.

Presto a minha homenagem a todas elas!!!!!!!!!!!!

Lina Vedes – 18 de Agosto de 2011

3 comentários:

  1. Gostei de ler o artigo da Lina Vedes que, simultaneamente, me trouxe à memória situações diferentes e tão semelhantes... Umas com jeito para escrever, outras para contar, seria interessante uns pequenos encontros onde cada um de nós relatasse um episódio, que a "escritora" teria o trabalhinho de publicar aqui no nosso blogue...
    Que tal, Lina?? Sentes-te desafiada? Já tenho vários episódios para o relato!

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  2. Que tal uns encontros para relembrar situações tão diferentes e tão semelhantes, que parecem estar a anos-luz desta nossa realidade...E foi apenas...ONTEM!
    O tempo de antena seria breve e a Lina passava ao blogue...uma forma de lembrarmos o muito que se conquistou nestes quase trinta e oito anos de democracia.
    Sente-te desafiada, eu sinto-me desde já convidada e com episódios para contar. Umas, pela escrita, outras pela oralidade...vamos construi um pouco de memória colectiva??!!

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    1. Que boa ideia!
      Toca a criar um forum de opiniões sobre a nossa carreira.

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